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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Mudar de Vida #16: Sara Sousa Ferreira

Fotos Sara de Sousa Ferreira - FIOAPAVIO (1).jpg

A culpa foi de um texto do livro de leitura, da Primária. Sara tinha 6 ou 7 anos quando deu com a história "O Tio Elói é Arquitecto". Quando chegou a casa disse, determinada, que já sabia o que ia ser quando crescesse: arquitecta. E assim ficou decidido. Bom, talvez a culpa não tenha sido do texto. Na verdade, talvez aquela história lhe tenha feito sentido porque a vocação para a área já lá estava. Porque o que é certo é que a vontade de seguir Arquitectura, ao invés de decrescer com a passagem do tempo, aumentou. E aumentou tanto que, no 9º ano, deixou a escola que ficava em frente à sua casa, na Póvoa de Santo Adrião, para ir para a António Arroio, o que a obrigava a levantar-se às 6h da manhã e a apanhar três transportes: camioneta da Póvoa até Entrecampos. Metro até ao Campo Pequeno. Autocarro até às Olaias. Nunca faltou às aulas, nunca desistiu do sonho. Quando chegou a altura de se candidatar à universidade, a decisão estava mais que tomada. Entrou para Arquitectura de Interiores, na Faculdade de Arquitectura de Lisboa, mas não quis. Então, entrou na Lusíada. Durante o percurso, um dos professores disse-lhe: "Se queres mesmo seguir isto tens de sair de Portugal". Ela achou que talvez fosse exagero. Não sabia ainda o que a vida lhe reservava. 

Começou a trabalhar ainda durante a faculdade, num atelier. Era para ter ido fazer um mestrado em Barcelona mas o fim de uma relação de 8 anos deixou-a sem forças para mudar de país e, por isso, ficou por cá. Trabalhou durante 11 anos consecutivos na sua área. Gostava do que fazia, apesar de trabalhar 16 horas por dia, por vezes mais. Continuava apaixonada pela Arquitectura, apesar de nunca ter tido um contrato: "Durante os 11 anos, estive sempre a recibos verdes. Falsos recibos verdes porque trabalhava como se fosse efectiva nas empresas. Anos a fio a recibos verdes. Sempre sem qualquer segurança contratual." 

Entretanto, chegou a crise da construção. Foi terrível. Os projectos pararam, as obras congelaram, o desemprego na área disparou. Calhou-lhe a si. Ficou desempregada. E foi nessa altura que recebeu uma proposta que a deixou de cara à banda. Uma empresa de recursos humanos contactou-a para que fosse gerente de uma loja de 800m2 de uma conhecida marca de retalho. Explicou que não era a sua área, que não tinha experiência, que nada sabia sobre o assunto. Insistiram, que queriam alguém que soubesse resolver conflitos, que pensasse fora da caixa, que justamente não estivesse dentro do ramo para o pensar de fora para dentro. E Sara pensou: por que não? Decidiu arriscar. E foi então que teve o primeiro contrato da sua vida. Sim, foi preciso sair da Arquitectura, com que sonhava desde os 6 ou 7 anos, foi preciso abandonar a área para a qual tinha estudado, para assinar um contrato de trabalho. 

Um ano depois, nova crise, tentaram emprateleirá-la, fizeram pressão psicológica. Ao mesmo tempo, teve um problema pessoal sério. Foi-se abaixo. Meteu baixa psiquiátrica, meteu os proprietários da empresa em tribunal, resolveu os assuntos, arrumou gavetas. Curou a alma. Entretanto casou e continuava desempregada. A construção ainda não tinha estabilizado, continuava sem conseguir arranjar emprego.

Um dia, uma amiga veio ter com ela. Tinha uma pulseira muito gira e, quando ela lhe contou quanto custara, Sara arregalou os olhos: "Quanto??? Credo, podias ter-me dito! Fazia-te uma igual!" A amiga não acreditou. E ela fez. Uma, duas, três, um colar, dois. As amigas andavam doidas com as suas criações. Sugeriram que fizesse uma página de facebook. E assim, no ano de 2012, nascia a Fio a Pavio. No dia 17 de Julho do mesmo ano, dia do aniversário da Sara, o marido ofereceu-lhe o registo da marca. Passado pouco tempo, Sara Sousa Ferreira começou a aparecer em revistas de nicho. Tinha criado uns maxi-colares que estavam a dar nas vistas. E é então, em Dezembro de 2013, que surge o convite para ir ao programa da TVI "Você na TV". Sara é bem capaz de ter sido das poucas pessoas com uma empresa para divulgar que recusou um convite tão apetecível: "Cada peça que eu faço é única. Troco dezenas de emails ou conversas com cada cliente, para tentar saber quais serão as cores e materiais que vou usar, para que cada peça faça sentido para cada cliente. Ora, estava no auge dos maxi-colares, cheia de encomendas e tive medo de ir ao programa e, depois, não conseguir corresponder às expectativas. Tive medo de não conseguir dar vazão a tanta encomenda."

As histórias que já se cruzaram com a sua fazem-na emocionar-se várias vezes durante a nossa conversa. Porque Sara é um vulcão emocional, sempre à beira de entrar em erupção. "Tive uma cliente que me encomendou um colar para oferecer à mãe que estava internada com cancro. A seguir enviou-me uma foto da mãe, de bata, com o maxi-colar que eu tinha feito. Fiquei tão comovida... Passado um tempo, manda-me mensagem a dizer que a mãe tinha falecido e acho que foi sepultada com o colar. Cada peça minha tem uma história. E eu adoro histórias. Adoro pessoas. Adoro afectos. Gosto muito de Arquitectura e hei-de ser arquitecta até ao fim dos meus dias mas a Arquitectura nunca me deu este retorno emocional, humano, que a Fio a Pavio me dá."

O pior é fazer a família compreender isto. Para os pais a filha passou de cavalo para burro. Sara compreende que tenha existido um grande investimento na sua formação e que até possa ter havido alguma incompreensão no início. Mas agora? Agora que já passaram seis anos, agora que passou por tratamentos de infertilidade e por uma gravidez de risco para conseguir ter os seus gémeos, algo que seria de todo impossível se tivesse persistido com o sonho da arquitectura, a trabalhar 16 horas por dia, num frenesim incessante e periclitante: "É mesmo isso que todos pensam de mim há anos (ou a grandessíssima maioria, vá): que passei de cavalo para burro. Olham para uma arquitecta que decidiu ficar em casa a enfiar missangas e a não ganhar subsídios e a não ter horários e pensam que fui de cavalo para burro. É isto que a família - e aqui dói a valer - vê. Não chega ter uma marca que aparece em horário nobre no telejornal da SIC pelas mãos da Joana Latino. A verdade é que nada do que faça para a família próxima chegará aos calcanhares de uma vida sem rumo onde trabalhava 12 horas no mínimo, a recibos verdes e sem retorno, apenas o estatuto de ser a senhora arquitecta. Eu sou muito mais eu com a Fio a Pavio, eu sou muito mais feliz com as minhas missangas despretensiosas do que com a hipocrisia e a falta de respeito dos ateliers. Eu não deixei de ser arquitecta. Apenas deixei de exercer."

Sara vive rodeada de cores, de objectos que põem as pessoas mais bonitas, mais felizes. Vive rodeada de histórias e de afectos, porque é essa a sua natureza, é esse o seu dom. Pode já não ser a senhora arquitecta mas isso é muito pouco quando comparado com a felicidade que lhe trazem todos os fios com que se liga ao mundo.  

 

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