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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Endometriose: uma erva daninha silenciosa

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Cláudia Cadete, 28 anos, não tem útero, ovários, trompas. A histerectomia foi realizada há três meses mas, por vontade dela, tinha sido há vários anos. Sim, a remoção cirúrgica dos seus órgãos reprodutores foi voluntária e há muito desejada. Cláudia não tem filhos mas, quando se vive em profundo sofrimento, a infertilidade é o menor dos males. Não se pode ser mãe (nem sequer se pensa nisso) quando se passa a vida em hospitais e internamentos e sem o mínimo de normalidade. Cláudia não passou do 12ºano, nunca trabalhou, não pôde tirar a carta de condução. Tem 28 anos e não sabe, não faz ideia do que é viver sem dor. Na verdade, não sabe bem o que é realmente viver. Espera que agora, com esta menopausa forçada e sem os órgãos onde essa erva daninha chamada endometriose crescia e se espalhava, consiga por fim começar a viver.

Tudo começou com a primeira menstruação, aos 12 anos. Cláudia teve tantas dores que desmaiou mas, claro, devem ter achado que era pieguice. Afinal, "é normal" ter dores de barriga. A coisa foi sendo suportável mas, aos 17 anos, Cláudia foi internada com um episódio de cólica violenta e, já com 18 anos, encontraram-lhe uma massa num ovário: "Era um endometrioma ou quisto chocolate. Disseram-me que havia de passar com a pílula. Mas tomei a pílula e não passou. Voltei a ser internada em Dezembro de 2010, com dores excruciantes e a perder sangue pela urina e pelas fezes. A médica, quando me fez a ecografia disse que havia uma hemorragia tão grande que não conseguia distinguir os meus órgãos. O facto é que a endometriose é um tecido, o endométrio, que devia limitar-se a estar no útero e começa a crescer descontroladamente, invadindo outros órgãos. Ora, quando se dá a menstruação, o endométrio descama e é por isso que há sangramento. E ele descama estando onde estiver - e no meu caso estava espalhado por todo o lado."

Em Abril de 2011, Cláudia foi operada na Maternidade Alfredo da Costa por uma equipa grande. Na primeira consulta pós-cirúrgica, o médico disse que nunca tinha visto um caso como o dela. Tinha endometriose na bexiga, nos intestinos, nos órgãos reprodutores, nos rins, nos músculos do abdómen. "Explicaram-me finalmente que a dor de que eu me queixava, num ombro, tinha que ver com aderências num nervo que liga o ombro ao diafragma. A cirurgia, que devia ter durado uma ou duas horas, demorou 6. Mas eu achava que ia ficar boa, e isso era a única coisa que me interessava."

Só que não. Foi-lhe dado um medicamento que provoca uma espécie de menopausa (reversível) e então ganhou derrames nas pernas, o corpo começou a mudar, engordou 40 quilos. As idas às urgências mantiveram-se, desta vez com infecções urinárias de repetição e mais dores violentas (acabaria por descobrir que, um mês depois dessa primeria cirurgia, a endometriose já tinha crescido de forma impressionante).

Cláudia tinha 18 anos e, sempre que ia à MAC, ouvia o que não é, de todo, suposto ouvir-se aos 18: "'Então, já começou a fazer tratamentos de fertilidade? Quando quiser ter filhos vai ter de fazer uma fertilização in vitro.' Aquilo dentro de mim começou a gerar uma revolta... sentia-me como gado para procriação. Eu tinha 18 anos! Comecei a responder que não queria ter filhos, que era a melhor forma de se calarem com aquilo."

Numa das muitas ecografias descobriram uma massa na supra-renal. Foram controlando mas, em Março de 2012, Cláudia foi operada de urgência: "Estava com muitas dores, para não variar, e fui fazer uma TAC ao British Hospital. O médico veio falar comigo e eu perguntei: 'então, a massa está maior?' Foi então que ele me disse que eu estava com uma hemorragia interna, e tinha de ser operada o mais depressa possível. A massa, que antes tinha 5 centímetros, estava com 10. Abaixo das costelas, os órgãos estavam esmagados. A massa estava a pressionar o fígado, os rins, a veia cava. Isto foi numa quinta-feira, eu estava a tentar acabar o 12º ano e ainda fui à escola, mas o médico ligou-me para eu ficar quieta. Fui operada na segunda-feira e sabia que estava a morrer. Quando acordei, tinha tubos por todo o lado. Não conseguia abrir os olhos mas ouvi os enfermeiros a falar: "Epá, nem sabes o que aconteceu! Chamaram-nos a todos, esta cirurgia correu mesmo mal!" No dia seguinte, o médico veio falar comigo: "Tinhas a massa a pressionar a veia cava e tiveste muita sorte porque a qualquer momento podias encostar-te a uma parede e morrer. A cirurgia foi mesmo muito complicada. Levaste 11 transfusões de sangue e foi porque não havia sangue para mais. Mas ainda vais ter de levar umas quantas. E as próximas 48 horas são cruciais."

Mais tarde, soube exactamente o que o médico queria dizer com cirurgia complicada. Tiveram de lhe remover a supra-renal direita e, ao fazerem-no, cortaram inadvertidamente a veia-cava. Além disso, para removerem endométrio das zonas envolventes, cortaram partes dos pulmões. Tiveram de chamar reforços para o bloco. 

Mas o martírio de Cláudia ainda não tinha terminado. No pós-operatório teve várias infecções, tomou doses maciças de antibiótico, foi encaminhada para um novo ginecologista que a entupiu de medicação até lhe provocar uma hepatite medicamentosa. Deixou de ir a hospitais públicos onde a resposta era sempre a mesma: "Isso não é nada, vá para casa", até o nada ser, afinal, uma emergência e dar aso a uma nova cirurgia. A primeira vez que pediu para remover o útero e os ovários tinha apenas 19 anos. "É muito nova, tenha filhos que isso passa. Como se fosse possível ter filhos nestas circunstâncias." Em 2015, foi operada de novo para remover uns nódulos no recto. Fez mais tratamentos hormonais, um vindo da Alemanha, outro de França, que nada fizeram (a não ser umas dores de cabeça terríveis).

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Durante todo este processo ouviu coisas que não pensou que lhe dissessem: "Quer deixar de ter órgãos reprodutores? Quer deixar de ser mulher? Os médicos deviam ter uma consciência diferente. Houve um médico que me disse que um dia, quando tivesse um parceiro, teria de ter os filhos dele. Mas quais filhos? Houve alturas em que não conseguia sequer ir à casa de banho sozinha! A dor era tanta! Cheguei a estar toda queimada do saco de água quente que punha encostado a mim, para aliviar as dores. E não senti queimar, porque as minhas dores eram superiores. E o cansaço? Arrastava-me, de dia para dia, ano para ano. De cirurgia em cirurgia, de internamento em internamento, de exame em exame. Que vida era essa? Filhos? O que é que me interessavam os filhos se eu não vivia?"

Há pouco tempo um médico teve o desplante de lhe falar de um "estudo" que concluía que a endometriose só afectava mulheres bonitas. "Não se queixe, porque é bonita!" Cláudia ficou boquiaberta: "Que parâmetros foram usados para definirem a beleza das doentes? Se isto fosse uma doença de homens, de certeza que não havia estudos tão idiotas como este!"

No final do ano passado, começou com hemorragias intestinais. E foi então que fincou o pé: "Vou pedir que me tirem o útero e implorar que me removam os ovários também. Antes disso, pedi para marcar uma consulta no Hospital de Santa Maria porque queria congelar os meus óvulos e nas clínicas privadas é caríssimo. Marcaram consulta para dia 8 de Fevereiro de 2021. Expliquei que ia ser operada para remover tudo, e que não podia esperar tanto. Tive de fazer ficha, escrevi no estado civil que era solteira e ainda tive de ouvir um "Sabe que para fazer bebés é preciso um homem, não sabe? Vai ficar sem útero, vai ficar com os óvulos para recordação? No seu caso nem vale a pena." Não apresentei queixa porque, sinceramente, não tinha energia para isso."

No dia 10 de Julho deste ano, aos 28 anos, finalmente conseguiu remover útero, ovários, trompas, mais umas novas massas no recto. Acordou e não sentiu dores no útero, porque já não o tinha. "Foi a primeira vez que não senti dores! Correu tudo bem. Bom, quer dizer... 15 dias depois tive uma obstrução intestinal, vou começar fisioterapia da bexiga, e ainda não sabem se os meus rins não estão comprometidos, porque foram atingidos pela doença. Sei que esta cirurgia pode não ser a cura, sei que a doença pode continuar a manifestar-se, mesmo sem útero, o órgão que deu primeiramente origem ao endométrio. Mas quero acreditar que melhore. Quero acreditar que a partir de agora é que vou começar a minha vida."

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