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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Conta-me #7

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Estou sentada na cama, os pés pousados na madeira escura, pés que mal parecem pés, são como duas bolas raidas de roxo, com cinco berlindes nas extremidades. Olho-os e sinto uma súbita vontade de chorar. Acabei de acordar, ainda nem abri bem os olhos, e já estou assim, à beira das lágrimas. Passo as mãos na cara, e volto a olhar para baixo. As unhas também já deixaram de ser unhas, são garras de ave de rapina. Rio-me. Uma ave de rapina que jamais conseguiria voar. Bom, os Boeings também voam. Rio-me de novo. Sim, sou uma espécie de ave-Boeing, um animal em vias de extinção. Um dia destes extingo-me. Era o melhor. Foco-me de novo nas unhas. Tenho de as cortar mas não consigo. Ao que cheguei. Se a minha mãe ainda fosse viva podia pedir-lhe. Teria vergonha na mesma mas pedia. Mãe é mãe, ainda que a minha sempre tenha sentido repulsa por mim. Sim, talvez não tivesse coragem de lhe pedir, agora que penso nisso. Só de imaginar o seu olhar enojado preferia manter as garras. Seja como for, agora resta-me a assistência da Junta de Freguesia e ainda não tive coragem de falar nas minhas unhas dos pés. Já basta o que basta.

Sinto um cheiro a azedo e por momentos não sei de onde vem. Olho em redor, talvez alguma coisa estragada que esteja para aqui. Se estiver debaixo da cama também não vou conseguir apanhá-la, o melhor é esquecer e pedir às meninas da Junta quando vierem. Não demoro muito a perceber que o cheiro, afinal, vem de mim. Vem do meu peito, daquele intervalo entre as minhas mamas. Um cheio acre, a suor e a sebo. Largo num pranto. Que miséria humana sou eu. Serei ainda humana? O ser humano define-se por ser bípede e inteligente e eu sinto-me cada dia menos bípede e cada dia menos inteligente. À falta de falar com outros seres humanos ainda deixo de saber falar. No outro dia, nem conseguia dizer "cobertor" para explicar às meninas da Junta que precisava de menos calor na cama. Dei por mim a balbuciar inícios de pseudo-palavras, como se estivesse a tentar lembrar-me do nome, quando na verdade à segunda tentativa desisti sequer de me tentar recordar. Alguém resolveu o assunto soltando a palavra "cobertor" e eu, aliviada, exclamei "isso" como se realmente me interessasse. Não me interessa. É indiferente. Para quê saber as palavras se não temos mesmo com quem as usar? O vocabulário, de o utilizar tão pouco, está a sumir-se do meu cérebro. Ou então está a ser engolido pela gordura. Todo o cérebro a ser devorado por bolhas gordas famintas. Tipo pacman. Rio-me sozinha, outra vez, mas a verdade é que os meus olhos estão cheios de lágrimas. Nem a sábia capacidade de me rir de mim própria consegue já resolver esta nuvem negra que se ocupou de mim.

Levanto-me, decidida a ultrapassar o estado de auto-comiseração que me assolou. Está cada vez mais difícil erguer este peso que sou eu.  Cada passo faz estremecer a casa, quem me mandou viver num prédio de 1900? Imagino o vizinho de baixo a levar com caliça do tecto nos cereais, a olhar para cima e a pensar "olha, a baleia acordou". Caminho devagar, para evitar estragos. Pé ante pé, como um elefante numa loja de porcelana. Gostava de ir à rua. Não saio de casa há cinco anos. Comecei por ter tanta dificuldade em subir os 4 andares que chegava a casa num lago, um lago quente e amarelo, uma espécie de piscina do Terranostra em São Miguel. Ficava de tal maneira cansada que me deitava e só acordava no dia seguinte. Podiam ser oito da noite, duas da tarde ou dez da manhã. O resultado era igual: um cansaço-doença que me deitava à cama até ao nascer do sol no outro dia. Quando fiquei desempregada fui evitando sair. Indiferente. Não tinha mesmo onde ir. Pedia as compras online, pizzas por telefone, e como a minha vida social também nunca existiu estava perfeito assim. Nos primeiros tempos ainda recebia uma ou outra visita da Lurdes, da Dada, da Amélia. Mas os dias foram passando e elas deixaram de vir. E eu deixei de descer as escadas no dia em que rebolei (o termo não podia ser mais apropriado) um lance inteiro e acabei içada pelo matulão do 2º andar que pediu reforços na rua. Houve ali um momento, quando ele saiu disparado de casa para me socorrer, em que nos imaginei num caso tórrido. Não sei que disparate foi aquele, talvez tenha sido o ar preocupado que fez, a forma como me pegou na cabeça, os olhos nos meus, "está bem?", não sei o que foi que me fez pensar que podíamos beijar-nos ali mesmo e ele levar-me ao colo para casa. Nesse instante, acordei para a realidade. Levar-me ao colo para casa??? Ah! Ah! Ah! Tem juízo nessa cabeça, Sara. O homem é matulão, não é um super-herói da Marvel. E pronto. O sonho terminou quando ele foi buscar mais gente à rua e acabei arrastada até casa por uma pequena multidão em esforço.

Nessa altura já tinha mais de 150 quilos porque a balança de casa dava erro sempre que subia lá para cima. Hoje não faço ideia. Nem quero saber. 

Sempre fui gorda. Nasci gorda. A minha mãe fazia questão de o recordar vezes sem conta, para gáudio dos presentes. O parto mais infernal de todos. O pequeno texugo que pesava 4,780kg e que quase a matou. Vagina rasgada, incontinência urinária, dores inconcebíveis, infecções na ferida que foi o meu nascimento. Acho que ela nunca me perdoou pelos estragos. A Sara que a fez engordar 35 quilos na gravidez, a Sara que já era faminta dentro da barriga, a Sara que lhe destruiu a forma, a Sara que lhe rasgou o corpo, destruindo a sexualidade, a feminilidade, o prazer. A vida. Cresci com o seu olhar de revolta. Mesmo quando não queria, olhava-me com reprovação. Havia sempre crítica na forma como me via, como me respondia, como me educava. Cresci sentindo-me repulsiva, intrusiva, destrutiva, um fardo. Depois veio a escola e os epítetos. Dos animais terrestres aos aquáticos. Vaca, bisonte, elefante, hipopótamo. Lontra, baleia, orca. Meti-me ainda mais para dentro, esqueci a possibilidade de ser "normal". Podia ter feito uma dieta, podia ter sido mais forte, podia ter começado a correr (como tantos que vejo, para cima e para baixo, da minha janela). Podia. Mas acho que, no meu mapa de possibilidades, essa nem sequer aparecia. Eu era assim desde que era feto. Preferi assumir e continuar a comer. Mais e mais. Cada vez mais.

Sentada no sofá, olho para mim como se me visse de um ponto exterior a mim. Camisa de dormir desapertada, pernas abertas, cabelo desgrenhado. Um corpo imenso, que ocupa os três lugares do sofá, um corpo disforme ao qual pertence uma alma também disforme. Falhei o objectivo de largar a auto-comiseração. Como não falhar? Como não sentir pena disto em que me transformei? Tenho a televisão ligada, não oiço o que dizem, não os vejo, não quero saber. Não me interessam as horas, os dias, os meses. Escuto o tic tac do relógio, que me esfrega o passar dos segundos, dos minutos e das horas nos ouvidos, e pergunto-me quanto tempo mais demorará este coração a parar. Tic tac. Tic tac. Quanto tempo terei ainda de aguentar até que ele pare de vez, exausto de trabalhar para tanto corpo, tanta massa, tanto desespero. Aqui fico. Até quando?

 

"Conta-me" é, como o nome indica - e não mente - uma rubrica de contos, escritos por mim

 

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