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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Conta-me #6 (para maiores de 18)

O pior de tudo são as noites. É o costume, não é? Imagino que lhe digam sempre isto. É um daqueles clichés. Mas é. O pior são as noites. Os fins de dia e as noites. Limpo o pó, limpo todos os dias, é ponto assente, há sempre pó que se acumula. Endireito os livros, os bibelôs, parece que nunca estão no sítio certo. Mas as noites custam por causa do silêncio. Saber que nas outras casas há conversas, discussões, gargalhadas. E eu ali com aquele silêncio, sem ter alguém com quem comentar as notícias. Quer dizer, ter até tenho, que falo muito sozinha. Pronto, agora é que me interna de vez. Falo tanto sozinha. Se não o fizer, ao fim-de-semana em que não vejo ninguém, fico com medo que a voz se cole na garganta e deixe de sair na segunda, quando torno a precisar dela. De maneira que falo. Falo muito com a televisão: "Olha, o Marcelo, benza-o Deus, isto é que é um presidente"; "Olha mais um que se explodiu... isto era rebentá-los a todos, acabar com esta gente que nem gente é, a aterrorizar assim todo o mundo, não estamos seguros em lado nenhum". No outro dia, veja bem, dei por mim a dar as boas noites à Clara de Sousa. Até me lembrei da minha avó que Deus tem. Ela é que cumprimentava os locutores, porque achava que eles falavam para ela. É... somos assim uma família de gente doida. Eu bem digo que um dia destes me interna...

A verdade é que gostava de ter um homem com quem partilhar a vida. Nem sei bem como foi que aconteceu acabar assim sozinha. Nunca fui uma estampa mas, caramba, também não me acho assim um mono tão grande! Sou? Oh, diga a verdade... Nunca ia dizer se achasse, não é? Como é que fazia? Ah, sim, Marisa, tenho de ser sincero, é feia como a noite dos trovões, como é que esperava que alguém lhe pegasse? Ah ah ah. Já não lhe pagava a consulta hoje e nunca mais cá punha os pés! Mas agora fora de brincadeiras, vejo por aí com cada camafeu feliz de mão dada com alguém... e eu aqui sozinha. Saio de manhã para ir dar aulas, passo o dia com os miúdos, almoço com outros professores, durante algum tempo ainda procurava na sala de professores algum olhar, algum sinal de que podia ali nascer alguma coisa. Cheguei a fantasiar um clima com um colega, acreditei que ele olhava para mim da mesma maneira que eu olhava para ele. Chegava a casa e imaginava-nos juntos. Vai-se rir mas cheguei a pôr a mesa para dois. Com uma vela e tudo. Não foi uma vez nem duas. Foram muitas noites de mesa posta para dois. Ridícula. Depois, levantava a mesa, lavava a loiça, e a seguir fechava os olhos e chegava a sentir o calor da mão dele na minha, quando me enroscava no sofá a ver a novela. À noite, deitada, fingia que ele me tocava, que me queria, que me despia. Os meus dedos eram os dedos dele, entrava por mim como se não fosse eu, e quando atingia o auge do prazer, cansada, podia sentir a sua respiração ofegante, palavra de honra que sentia, o calor da sua respiração no meu pescoço, o corpo quente em cima do meu. A seguir invadia-me uma tristeza funda e abafava o choro na almofada, porque acordava do meu sonho e ali estava eu sozinha, como sempre.

Parei de fantasiar com ele quando começou a sair com uma colega nossa. Da primeira vez que os vi sairem da escola de mão dada pensei que o meu coração ia parar. Aquelas mãos eram as nossas. Aqueles risos deviam ser os nossos. Ele devia ser meu e eu dele. Os nossos corpos entendiam-se tão bem nos meus sonhos... Disparate. Eram só sonhos. Nada mais. Desde então não voltei a entregar-me a essas imaginações. São veneno. Mais vale assumir que é assim e assim será. Tenho 50 anos. Quem é que me vai pegar agora? Ainda se fosse divorciada, viúva... Mas solteira? Encalhada? Não. Ninguém me pegou até agora, não é agora que vão pegar. 

Vou-lhe contar uma coisa. Vai achar que sou perversa, uma tarada. Se calhar é mesmo desta que me interna. Tenho uma fantasia... oh, não conto. Tenho vergonha. Tenho tanta vergonha. Sim, eu sei. É para isso que cá estou, para contar estas coisas que me vão dentro e que o ajudam a ajudar-me. Mas vai achar que sou uma depravada e a crua verdade é que nada disto passa da minha cabeça para a realidade. Ok, eu conto, que se lixe. Imagino-me muitas vezes a entrar num táxi com uma saia e sem cuecas vestidas. E depois fantasio que abro as pernas e deixo o taxista ver-me, pelo espelho. A seguir, ele para o carro num ermo qualquer, abre a porta de trás e penetra-me com violência, uma violência que não é mais que um desejo animal. Pronto. Já contei. É a isto que cheguei. À vontade de ser tomada por um homem à bruta. Bati no fundo. No fundo da solidão mais funda.

Desculpe. Já lhe gastei quase os lenços todos de papel. 

Sim, já estou mais calma. Já passou. Tenho de agradecer a vida que tenho, deixar-me destes queixumes. Afinal, tenho saúde, tenho trabalho, tenho uma casinha para onde vou a seguir. Faço uma sopa de hortaliça, vejo os testes dos miúdos, levo a sopinha num tabuleiro para a sala, talvez beba um copo de vinho, e a seguir vejo a novela. O que é que quer? Gosto, pronto. Distrai-me. Depois deito-me, que amanhã o dia começa cedo. Durante o dia esqueço-me da solidão, porque estou rodeada de gente. O pior é à noite. Já tinha dito. Passo a vida a repetir-me, eu sei. Mas é que fora daqui tudo se repete também. Vá, não o maço mais. Até para a semana. 

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Edward Hopper 

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