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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Cabelo: esse símbolo

Quando o cabelo começa a cair, com os tratamentos oncológicos, há alguma coisa que inevitavelmente se quebra. É real mas é também profundamente simbólico, sobretudo - creio - se se tratar de uma mulher. Não é que um homem não valorize a sua densidade capilar mas a verdade é que é muito mais frequente vermos homens saudáveis carecas, sem se ralarem muito com o assunto. Já as mulheres não levam a coisa com essa leveza, e mesmo que a queda de cabelo seja "natural" e não provocada, é vê-las a arranjar estratagemas para disfarçar o problema. Por isso, quando o cabelo cai, devido aos tratamentos contra o cancro, é uma dupla dor: por um lado verem-se sem cabelo, importante moldura do rosto, importante elemento da sua feminilidade; e por outro saberem que aquela calvície é como que um letreiro que carregam, todo escrito a néon, para toda a gente ver: "Aqui vai alguém com cancro". E se há quem não se importe de levar letreiros escarrapachados na cabeça, há quem se sinta devassado naquela que é uma luta íntima. Tem graça. Estava a escrever isto e a lembrar-me da senhora que se sentava ontem ao meu lado na sala de espera do hospital (enquanto eu esperava pela pessoa que acompanho). Eu estava a ler o último livro do João Tordo e a senhora meteu conversa: "consegue ler com todo este barulho?" Eu sorri e compreendi a pergunta. Sou geralmente muito distraída e é verdade que qualquer ruído me distrai, mas expliquei-lhe que, como se trata de um thriller e está muito bem escrito, não estava a ser difícil. De seguida, encetámos conversa. E às tantas ela diz-me isto, que me fez agora sentido no que estava a pensar sobre o cabelo: "Eu não consigo ler com barulho e também nunca trago o livro assim, com a capa à mostra. Visto-lhe sempre um forro. E nem é por vergonha do que leio, acho que até leio literatura muito recomendável (risos), mas não gosto que saibam o que leio. Sinto-me exposta." Ora, se até na leitura de um livro, há quem queira preservar a sua intimidade, o que dizer de expor para o mundo que se está a travar a maior batalha da vida?

Felizmente hoje existem imensas soluções muito interessantes, nomeadamente perucas (que hoje se chamam pomposamente "próteses capilares") tão realistas que conseguem devolver ao doente a sua imagem, tão semelhante à anterior que é como se, por momentos, oferecessem a ilusão de que a doença não passou de um sonho mau. É verdade que a ilusão passa mas a auto-estima permanece. E todos sabemos como a auto-estima é importante, tão importante que até há teorias a apontá-la como causadora ou curadora de muitos males. Se o doente conseguir olhar-se no espelho e reconhecer-se naquela imagem... já é um bom primeiro passo. Para não se perder a identidade física, num percurso que, psicologicamente, já é tão duro.

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Nota 1: obviamente que isto não é válido para todas as mulheres e há aquelas que não se importam rigorosamente nada com o facto de estarem carecas, que até acham importante serem essa bandeira, que gostam de se ver sem cabelo! Todas as opções são válidas, desde que as pessoas estejam confortáveis com elas, que para desconforto já basta o maldito.

Nota 2: Não ganho nada com isto mas acho importante revelar: a pessoa que eu acompanho comprou uma peruca absolutamente espectacular no cabeleireiro Great Lenghts, no cruzamento entre a Av. EUA e a Gago Coutinho. O atendimento foi personalizado, numa sala privada e recatada, feito por uma funcionária simpática e eficiente sem ser demasiado nhenhenhe (às vezes as pessoas tratam os doentes como se eles tivessem regredido em idade), e a peruca é tão incrivelmente natural que ninguém conseguirá adivinhar que é falsa. Mais: fica-lhe tão bem que rejuvenesceu 10 anos! Recomendo este sítio.

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