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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Ano Sabático: não entrar na faculdade não tem de ser um drama

Quando o Manel não entrou na universidade, nós já sabíamos que ele não ia entrar. Isto é: não foi por décimas, centésimas, não foi por uma unha negra. Não entrou porque a média não chegou para o curso que ele queria, e é a vida. O Manel teve média de 16,5 no 12º ano mas no 10º e 11º a média foi fraquita, ali a rondar o 13. Os professores foram avisando os alunos, os pais foram lembrando os filhos, mas nesses anos tudo parece ainda um bocado distante. É quase como a morte, que a gente sabe que é certa, mas não é para já (pelo menos queremos sempre acreditar nisso). É uma realidade ainda distante, parece que ainda falta muito, mas na verdade não falta. E as médias contam de forma igual, não há cá contemplações. E se há uns miúdos que o sabem e que se matam a trabalhar logo a partir do 10º porque têm as coisas muito bem definidas nas suas cabeças, outros há que não. É assim a vidinha: diversa, múltipla, cheia de cabeças e suas sentenças. De modo que, mesmo com os exames, a coisa não esticou e ele ficou à porta. Não vou agora dizer que foi a coisa melhor que aconteceu e que não houve ali momentos de alguma preocupação e indecisão: muda de curso e depois logo se vê? Vai estudar para outra cidade e depois logo se vê? Vai para uma universidade privada e depois logo se vê? Ou fica um ano a fazer melhoria de notas, e depois logo se vê?

Houve imensos conselhos, de imensa gente, de certeza com a melhor das intenções. Nós procurámos ouvir muitas opiniões porque várias cabeças pensam melhor do que uma e, de repente, podia haver uma solução ideal de que ainda não nos tínhamos lembrado. Ele, por outro lado, começou a definir a sua estratégia e, cá em casa, houve algumas divergências. Ele queria optar por ficar um ano a fazer melhorias, havia quem concordasse, havia quem discordasse, havia quem achasse que podia ser um ano de ganho de maturidade, de acumular de novas experiências, havia quem tendesse a acreditar que seria o ano da rebaldaria e do dolce fare niente. Foram tempos duros, hein? Não digo que não. Dias houve em que a tensão quase se conseguia cortar à faca, e agora que olho para trás, apesar de compreender aquele tempo de indefinição, de dúvida, não deixo de pensar que, de facto, tendemos a achar que o fim de um caminho é quase como se fosse o fim do mundo. Foi o que nos foi incutido: que é preciso fazer esta carreirinha certa do princípio ao fim, que os desvios são perigosos, que pode haver ameaças à espreita que nos separem para sempre da nossa meta e que, por isso, mais vale nem sequer arriscar.

Repito: não vou agora enaltecer a gandaia, "ah e tal, o melhor que podem fazer da vida é mesmo serem uns cábulas e não entrarem na faculdade logo a seguir ao 12º ano". Não. De todo. Teria ficado muito mais contente se o rapaz tivesse feito o percurso certinho e estivesse agora ali no quarto ocupadíssimo a estudar para os exames. Mas... e é aqui que a porca pode - e deve - torcer o rabo: não tem de ser um drama, nem sequer tem de ser mau se os miúdos não fizerem tudo certinho. Pode ser interessante pensar num plano B para que, muito mais do que "um ano perdido", este possa ser, em bom rigor, um "ano ganho". 

Assim, surgiu a sugestão do voluntariado internacional. O Manel já faz voluntariado por cá, pontualmente, até porque a maior parte das organizações que aceitam voluntários exigem que tenham mais de 18 anos (e ele acabou de os completar), e por isso, ir ajudar quem precisa além-fronteiras parecia uma experiência enriquecedora. Sim, porque se é verdade que os pais mandam os filhos com o objectivo de irem colaborar na construção de algumas ideias e estruturas que não existem em alguns pontos do globo, apoiando outras pessoas, também não é menos verdade que o fazem pensando que essa experiência também vai ajudar a formá-los. É altruísmo mas também é egoísmo. Damos mas também sabemos o que vão receber, em termos de valores, de consciência do mundo, do outro, das necessidades, da noção de vida privilegiada que têm e de que por vezes se esquecem. Não tem mal nenhum, isso. É dar e receber. É uma troca, uma partilha. 

O Manel pesquisou muito sobre o assunto e fez uma folha Excel com as várias organizações que encontrou, os pontos fortes, os pontos fracos, os valores que se iriam gastar numa e noutra. E foi então que escolhemos, em conjunto, a Para Onde. A razão principal foi o facto de estar tudo muito claro, no site. Há organizações que pecam pela... desorganização, pelo menos de um ponto de vista inicial. Uma pessoa olha para alguns sites e não percebe nada, há botões e mais botões, clicamos e vamos dar a outras páginas, e até se conseguir entender a lógica já se perderam dois dias. Ali não. Está lá tudo claro como a água. E isso dá logo um certo descanso a quem está a pensar botar o filho no mundo (e ao próprio filho, que se vai fazer ao mundo).

Foi ele que tratou de tudo: contactou-os, inscreveu-se no programa que se enquadrava mais com o que queria fazer e também com os timings de que ele dispunha (porque depois tem mesmo de começar a estudar a sério), foi à formação, fez a consulta do viajante, tratou do Visto na Embaixada, foi às vacinas. Dos voos tratámos nós porque requeria alguma complexidade. Afinal, ele tinha de ir até São Tomé e, depois, apanhar novo voo para a ilha do Príncipe. Também tratámos do hotel em São Tomé, para que pernoitasse, uma vez que à hora que ia chegar já não havia voos para o Príncipe (só na manhã seguinte). 

Houve alguns pagamentos que tivemos de fazer, nomeadamente: a inscrição no programa Para Onde e a estadia lá (creio que no total foram 245€); o seguro; o Visto; a consulta do viajante e as vacinas e remédios recomendados (não há vacinas obrigatórias, apenas recomendadas); os voos para São Tomé com a TAP; os voos para a ilha do Príncipe; a estadia num hotel em São Tomé por uma noite e, claro, o dinheiro para sobreviver por lá durante um mês.

Não ficou propriamente barato mas, visto à lupa, se tivesse ido para uma universidade privada, o valor ficava atingido em dois meses (entre propinas e matrículas e livros e o caneco). O mesmo se tivesse ido estudar para outra cidade (entre transportes e propinas e quarto e livros e o caneco). Ok, depois teria continuação (não seria só um mês) mas a ideia é mesmo esta: já que se interrompe o percurso, então vamos lá fazer uma coisa que seja - esperamos nós - transformadora,  no sentido de o enriquecer como ser humano. 

E a verdade é que só a viagem até lá já o obrigou a dar um esticão valente. Nas vésperas foi aquele subir de nervosismo, o fazer a mala, saber que só podia levar 15 kg porque o voo de São Tomé para o príncipe foi feito num avião-casca-de-noz e esse era o máximo de bagagem permitido por passageiro, a escolha de algumas coisas para levar para o seu trabalho (mas poucas por causa da limitação do peso: um caderno, canetas de feltro, tintas, cartas, um livro infantil, uma bola de futebol vazia e respectiva bomba para a encher), as despedidas dos amigos, da família, da namorada.

No dia da partida (sábado passado), quando passou o seu passaporte nas portas automáticas do aeroporto, ele sabia que estava por sua conta. Estava sozinho e só no dia seguinte, depois de novo voo, iria encontrar alguém da organização. Enquanto isso, era ele e só ele, a caminho de outro continente. Tinha uma mala de viagem e uma mochila que sabia que não podia de modo nenhum perder. Com bilhetes de avião, passaporte, dinheiro, documentação variada. Passou pelo controlo de bagagem que é aquele momento sempre stressante (pelo menos eu fico sempre tensa como se tivesse alguma arma ou droga escondida), apanhou o avião e, como tem algum medo de voar, teve de engolir o medo porque não tinha ninguém com quem o partilhar. Passou 8 horas ali dentro, com paragem no Gana, sem saber se teria de sair do avião ou não (mas não). Chegou a São Tomé, levou com aquele bafo quente e húmido que avaria logo a mona de quem chega de uma estação completamente diferente. Ia com a ideia de, ainda no aeroporto, trocar euros por dobras e comprar um cartão para o telemóvel (para poder comunicar), só que já estava tudo fechado. Assim, sem comunicação e sem dinheiro local (mas eles aceitam euros em muitos sítios), saiu à procura do hotel. Sabia que era perto mas não sabia onde. Lá encontrou o hotel. Instalou-se, perguntou onde podia jantar, jantou sozinho e voltou para o quarto. No dia seguinte, acordou, tomou o pequeno-almoço, fez o check-out, dirigiu-se ao aeroporto para apanhar o segundo voo, rumo a Príncipe. E, já em Príncipe (depois de um voo num teco-teco, nem imagino a miaúfa), apanhou boleia de um homem da organização que o levou de mota, sem capacete, ao mesmo tempo que segurava com uma mão na sua mala, até à casa onde vai viver durante o próximo mês. Uma casa humilde, de telhado de zinco, onde vive um casal com 6 filhos. Só isto, creio eu, já o terá feito crescer para caraças. Agora é o trabalho diário, junto de idosos e crianças. 

Digo e repito, para que não me julguem mal (e há sempre essa tendência, para ler na diagonal e fazer interpretações erradas): eu continuava a preferir que ele tivesse entrado no curso que mais queria, numa das melhores universidades que por cá temos, e que fizesse este voluntariado numas férias quaisquer, por exemplo, ou no final do curso. Era o melhor de dois mundos. Mas nem sempre podemos ter o melhor de dois mundos. E vai daí que até é possível tornar um mau acontecimento numa boa circunstância. Ou, como se costuma dizer, atribuindo tal feito a Deus: escrever certo por linhas tortas. É isso que ele está a procurar fazer (sem querer imiscuir-se, naturalmente, nas obras de Nosso Senhor). É isso que acreditamos que fará. 

PRINCIPE.jpgFoto Principe.jpg

Esta foto do João Cajuda (e outras como esta) mostram bem a beleza da ilha (aproveitem e vão ao site dele, pode ser que se inspirem para viajar para este ou outro destino)

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